Ciência Hoje

Janeiro/Fevereiro de 2002

 

BIOINFORMÁTICA Pesquisadores estudam sinais gênicos que controlam metabolismo celular

 

Para entender

a conversa dos genes

 

 

A pesquisa genética pode ter diversas aplicações, como a seleção de espécies mais vantajosas na agropecuária, a criação de medicamentos mais eficazes e até

a melhoria do diagnóstico e tratamento

de várias doenças. Mas para isso é preciso ir além do seqüenciamento dos genes e descobrir como eles interagem no controle do metabolismo. Com o objetivo de construir modelos matemáticos que descrevam esse processo, pesquisadores do núcleo Bioinfo, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP), estão estudando o processamento dos sinais dos genes. O ‘sinal’ de um gene é a variação no tempo de sua produção de RNA mensageiro (mRNA)para codificar uma proteína.

O estudo envolve análises da expressão gênica em matrizes conhecidas

como ‘cDNA microarray’, uma espécie de ‘fotografia instantânea’ da atividade dos genes. As matrizes são obtidas a partir de experimentos em lâminas com até 8 mil genes. Cada matriz mostra a expressão dos genes (a produção de mRNA) em um determinado momento da vida da célula (em etapas consecutivas de crescimento celular, por exemplo). A digitalização dessas matrizes

gera imagens que podem ser analisadas no computador,

para a determinação dos valores de expressão dos genes, que definem

as curvas de evolução temporal dessa expressão – os sinais

de cada gene.

Segundo Júnior Barrera, presidente do núcleo Bioinfo, o estudo representa uma dimensão além da codificação genética. “É como se grampeássemos uma rede de comunicações telefônicas de uma cidade e gravássemos um

trecho das conversas. Não adianta saber apenas os números dos

telefones dos assinantes. É preciso saber também quem está conversando

com quem e o que está sendo conversado”, afirma. De acordo com Barrera, o sinal do gene resulta da interação entre uma rede de genes. “A rigor, não se pode falar em função de um só gene. A função está associada a um conjunto de genes, trabalhando em concerto”, explica. O pesquisador compara o processo ao funcionamento das redes neurais. Nesse caso, cada neurônio recebe impulsos nervosos (sinais elétricos) de outros neurônios, provenientes de estímulos

externos (frio, calor, umidade) ou internos (medo, fome,dor). O processamento dos sinais recebidos determina se o neurônio transmitirá o impulso nervoso:

se a somatória desses sinais ultrapassa o ‘limiar de excitação’ da membrana do neurônio, ocorre uma variação de potencial que permite a transmissão do impulso. A resposta do organismo ao estímulo inicial, que pode ser uma ação, como o movimento de uma das mãos, é determinada pelo processamento de todos esses impulsos nervosos pela rede de neurônios.

Os genes também têm sua ‘rede de comunicações’. A diferença é que, em vez de um sinal elétrico, a ‘unidade de informação’ dos genes é a proteína, sintetizada em uma organela celular chamada ribossomo a partir das instruções contidas no mRNA. As proteínas podem interagir com outras proteínas, formando novas estruturas, e deslocar-se para o núcleo da célula, onde, de acordo

com suas configurações geométricas (domínios), são capazes de ‘encaixar-

se’ nos genes, transmitindo informações. O processamento dessas informações pelo gene determina se ele produzirá mais mRNA ou não, ou seja, define sua

expressão (seu sinal).

Assim como ocorre no sistema nervoso, o processamento dos sinais gênicos também resulta no controle de ações (no caso, atividades metabólicas dentro das células). Esse controle é realizado por proteínas que atuam como enzimas. Elas catalisam todas as reações do metabolismo, responsáveis pelo funcionamento e pela estrutura dos organismos.

 

Modelos computacionais

 

Segundo Barrera, o objetivo das pesquisas é entender como os genes processam esses sinais para controlar as atividades celulares. A idéia é desenvolver modelos matemáticos computacionais que descrevam a dinâmica de interação entre os genes. Para isso, os sinais registrados passam por procedimentos de data mining (mineração de dados): de início, é feito

o clustering (agrupamento de sinais similares), para reunir os conjuntos de genes com a mesma função na célula e para reduzir o número de variantes. As curvas resultantes são submetidas a processos matemáticos (algoritmos) de identificação de sistemas, que permitem ‘decifrar’ as equações que descrevem os modelos de interação gênica. “É como se gravássemos 10 segundos de uma conversa e tentássemos reconstituir dois minutos dela”, compara Barrera.

De acordo com o pesquisador, esses modelos poderão esclarecer em detalhes como uma droga atua para modificar um sistema, o que ajudará a criar medicamentos mais eficazes. Também permitirão detectar falhas no mecanismo

de controle gênico, responsáveis pelo surgimento de células cancerosas. “Poderíamos reconhecer padrões diferentes e planejar formas de correção”, diz o cientista. Esse conhecimento poderá ainda ser útil na seleção de fenótipos na agropecuária: “Se soubermos que genes estão associados ao controle das propriedades de uma espécie, poderemos induzir um organismo a ter esses genes.”

 

INDEPENDÊNCIA NA EXTRAÇÃO DE DADOS

 

O Bioinfo-USP foi criado há cerca de um ano e meio e hoje coopera em diversos projetos de pesquisa, como alguns relacionados ao câncer, do Instituto Ludwig. Também atua em parceria com outras unidades da USP, participando do projeto

Cooperation for Analysis of Gen Expression (Cage), do Instituto de Química, de estudos sobre o eucalipto (para produção de papel), a cana-de-açúcar e a avicultura, realizados na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, e de pesquisas sobre vírus e malária do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB).

Os pesquisadores do núcleo estão patenteando um método de avaliação de técnicas de clustering (agrupamento de sinais gênicos), desenvolvido em conjunto com a Universidade Texas A&M (Estados Unidos). Também criaram, em cooperação com o Nacional Human Genoma Research Institute (NHGRI), também dos Estados Unidos, um método experimental para classificar tipos de câncer, ainda em fase de publicação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou um projeto do núcleo que prevê a realização, em conjunto com o ICB, de um curso de bioinformática para a América Latina.

Segundo Barrera, a bioinformática tem como objetivo responder a perguntas biológicas, o que é feito de forma interativa: “Integramos a informação qualitativa (o conhecimento do biólogo) com a informação quantitativa (o conhecimento acumulado nos bancos de dados sobre código genético, estrutura de proteínas, expressão dos genes, informações clínicas etc.) através de ferramentas computacionais e modelos matemáticos.” Uma das

metas do núcleo é ajudar cientistas de diversas áreas, criando ambientes computacionais adequados, para que eles não fiquem restritos às tecnologias convencionais. Para o pesquisador, tão importante quanto gerar dados, é saber interpretá-los. “É uma questão estratégica para o país a independência na extração de informação dos dados. Quem tiver capacidade de construir ferramentas próprias, quando necessário, estará em uma posição privilegiada.”

 

 

Marcelo Alexandre Barbosa

Especial para Ciência Hoje/SP