Jornal da USP

06 a 12 de dezembro de 2004

 

genética
Mais um prêmio para a ciência brasileira
O País, que já era reconhecido pela capacidade de gerar dados de biologia molecular, agora ganha destaque pela análise de informações obtidas no exterior

MARCIA FURTADO AVANZA, ESPECIAL PARA O JORNAL DA USP

O evento na Carolina do Norte, em novembro: pela primeira vez, uma universidade de fora dos Estados Unidos obtém o primeiro prêmio no Camda, um concurso internacional sobre análise de dados de microarray

 

 

Um grupo de pesquisadores da USP conquistou no mês passado um prêmio inédito: o primeiro lugar no concurso Camda 2004. É a primeira vez, em cinco anos de edição do concurso, que uma universidade de fora dos Estados Unidos é premiada. Entre os artigos submetidos,12 foram selecionados para apresentação oral. Essas palestras, realizadas nos dias 11 e 12 de novembro no Durham Hilton, na Carolina do Norte, contaram com uma audiência de 75 pesquisadores, entre biólogos, estatísticos, computólogos e matemáticos, vindos de 11 países.

O Camda é um concurso internacional sobre análise de dados microarray. A idéia é que todos os participantes analisem um mesmo conjunto de dados. Este ano os dados de expressão gênica selecionados foram do ciclo de vida do parasita da malária. O professor Junior Barrera, do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, explica que esses dados já estavam sendo trabalhados pela equipe coordenada por ele e pelo professor Hernando Antonio del Portillo, do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, antes de serem escolhidos pelos organizadores do Camda 2004.

A malária humana, causada por parasitas unicelulares do gênero Plasmodium, atinge anualmente de 300 a 500 milhões de pessoas, com taxa de mortalidade entre 1,1 e 2,7 milhões, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). As principais regiões atingidas são África, Índia, Sudeste Asiático e Américas do Sul e Central, estando no Brasil a maioria dos casos na América Latina.
De acordo com Barrera, o troféu recebido da Duke University foi surpresa para todos. "Éramos os únicos representantes da América Latina. Todos os outros grupos presentes eram norte-americanos e europeus. Ganhamos porque conseguimos fazer a classificação funcional de alguns genes que outros grupos não conseguiram. Esse resultado foi possível porque adotamos um modelo matemático mais adequado para representar a interação entre genes."

Mas a maior alegria da equipe, segundo ele, não é exclusivamente pelo prêmio em si, mas por mostrar que "aqui na USP fazemos coisas completamente comparáveis às que acontecem lá fora. O Brasil já é reconhecido pela sua capacidade de gerar dados de biologia molecular, mas também merece ser destacado pela sua competência em analisar esses dados".

A apresentação oral nos Estados Unidos foi feita em três partes. Barrera apresentou a introdução e o modelo matemático; o professor Roberto Marcondes César Jr., também do IME, apresentou os detalhes da implementação computacional; e Del Portillo fez a interpretação biológica dos resultados que a equipe obteve. Além de Barrera e Del Portillo, a equipe é formada por professores, pós-doutorandos, estudantes e técnicos dos Departamentos de Ciência da Computação e Estatística do IME e do Departamento de Parasitologia do ICB (Roberto Marcondes Cesar Jr., David C. Martins Jr., Fernando Merino, Ricardo Z. N. Vêncio, Márcio M. Yamamoto e Carlos Alberto de Bragança Pereira).

Interação entre ciências - Barrera explica que o sucesso do projeto deve-se ao trabalho conjunto de áreas distintas que não interagiam no passado. Há um século e meio, quando a genética começou a se estabelecer, surgiu a tendência de se estudar fenômenos que tivessem uma abrangência maior de capacidade explicativa.
Atualmente, já se conhece bem a dinâmica do funcionamento dos genes que controlam as vias metabólicas e que estão por trás do funcionamento de qualquer organismo vivo. Sabe-se que esses mecanismos - de uma bactéria, de uma planta, de um rato ou de um ser humano, enfim, de todo organismo vivo - têm por trás conceitos de bioquímica, biologia molecular e celular. Têm expressão, têm tradução e têm sinalização, entre outros. Assim, passou-se a conhecer um conjunto de ferramentas, de entendimento biológico, que se aplica tanto na agricultura quanto no câncer e no estudo da malária. Barrera acredita que este é um momento histórico. "Eu não tenho dúvidas de que daqui a 200 anos, quando olharem a história da ciência, a época em que vivemos hoje vai ser um marco notável: a integração entre as ciências exatas e biológicas."

Essa aproximação já vem sendo construída há vários anos. Na década de 60, por exemplo, o prêmio Nobel de Medicina foi concedido a dois pesquisadores que construíram um modelo matemático para explicar como o sinal elétrico se propaga no neurônio. "Agora se conseguem coisas análogas com os fenômenos de genética, que são muito mais abrangentes", explica Barrera. Os fenômenos neuronais servem para explicar fenômenos em alguns tipos de organismos, enquanto os fenômenos de biologia molecular têm aplicação em agricultura, pecuária, ecologia e síntese de drogas, entre outras áreas. Por isso são tão abrangentes. "E essa aproximação vem da capacidade de medir grandezas associadas a fenômenos importantes. Exemplos dessas grandezas são a corrente elétrica em neurociência e a expressão em biologia molecular."

A física, por exemplo, se aproximou da matemática quando se percebeu que, para descrever os fenômenos físicos, era preciso medi-los. Uma ilustração disso são as equações de cálculo diferencial usadas para descrever movimentos, que são validadas pelas medidas de deslocamento, velocidade e aceleração.
Fatos análogos ocorrem em biologia. No momento em que se conseguiu medir a concentração de RNA - o sinal de expressão que está envolvido nos fenômenos de regulação metabólica - abriu-se espaço para construir modelos matemáticos explicativos do que acontece na regulação gênica. E, na medida em que passou a ser possível construir esses modelos, já se pode sonhar em escolher alvos para drogas a partir deles.

Os pesquisadores premiados: "Ganhamos porque conseguimos fazer a classificação funcional de alguns genes que outros grupos não conseguiram. Adotamos um modelo matemático mais adequado para representar a interação entre genes", diz o professor Junior Barrera

O novo desafio

A ligação da biologia com a matemática vai possibilitar, por exemplo, que antes de se desenhar uma nova droga, que vai ter efeito em um determinado gene, possa-se simular o efeito disso no computador. "É uma espécie de pré-processamento. Simula-se o efeito da droga antes de se gastar muito tempo desenhando a droga. Para explicar melhor a idéia, podemos fazer uma analogia com o controle de tráfego urbano em uma grande cidade, como São Paulo. Antes de se trocar uma via de direção, pode-se simular no computador o impacto disso no fluxo de veículos."

Segundo Barrera, a perspectiva é imensa. Todas as doenças conhecidas vão ter abordagens que passam pela biologia molecular, desde o vírus HIV até o câncer. E o mesmo se aplica à agricultura, pecuária e ecologia.

O modelo matemático foi o que permitiu aos pesquisadores a análise da regulação dos genes no parasita. "Nós ganhamos o prêmio porque aplicamos uma técnica que ninguém estava aplicando nesse conjunto de dados. Nós misturamos modelagem estatística com teoria de informação para resolver um problema de biologia." A teoria de informação é uma técnica matemática criada para projetar, por exemplo, redes de comunicação por satélites ou linhas telefônicas. "Num contexto de um certo modelo matemático, aplicamos essa técnica para identificar as relações entre os genes".

O próximo passo da equipe é tratar de forma sistemática todos os dados dinâmicos disponíveis sobre regulação gênica em malária. "O que nós tratamos até o momento é um pequeno subconjunto dos genes. Agora nós queremos fazer isso de forma sistemática em todos os genes conhecidos e identificar redes de regulação. Para isso, vamos precisar de um supercomputador."

O grupo espera que o resultado desse esforço seja a identificação de novos alvos para erradicar a doença. "Se não formos capazes de resolver o problema, esperamos que alguém o faça. Pelo menos, esperamos contribuir com alguns tijolos na edificação do conhecimento." Mas o prêmio recebido pelos pesquisadores brasileiros mostra que o País está na ponta do conhecimento na área.

Colaborou Anna Maria Fernandes